“O excesso perdeu seu lugar no mundo”
*Texto publicado em maio de 2020
Há pouco mais de uma semana li uma entrevista com a Chef Roberta Sudbrack, sobre a situação atual e os pensamentos dela, e uma frase que ela disse ficou cravada: “O excesso perdeu seu lugar no mundo”. Não tenho como não concordar inteiramente! Não tem como não pensar que o “normal” pré-pandemia pode ser o que nos trouxe até aqui. E que muita coisa terá que ser revista nas relações de consumo e mercado. É minha visão e o que tenho matutado ultimamente. Por outro lado, a pandemia parece acelerar alguns movimentos que já vinham acontecendo pela gastronomia, e isso é positivo.
O mundo globalizado rompeu barreiras e aproximou as pessoas, mas também homogenizou muita coisa. Consequentemente, vivemos também uma perda de identidades e contato com nossas raízes. A pandemia fez acelerar a já iniciada movimentação de resgate desse contato com nossa cultura. Quando nos sentimos perdidos, voltamos para aquilo que nos é familiar e seguro, tentando fugir do cenário de incerteza instalado. Buscamos novamente o sentimento de pertencimento, e a comida é com certeza o caminho mais rápido para essa conexão. Não é a toa que lives incontáveis para compartilhar receitas surgiram.
Fala-se da valorização do produto e produtor locais, respeito aos ingredientes, conhecer seu alimento (de onde vem e como é produzido), consumo consciente etc, mais do que nunca.
“O excesso perdeu seu lugar no mundo”, ressoa a frase na minha cabeça.
E então, poucos dias depois, vejo uma atrocidade doce (não chamo de confeitaria, pois não é) surgir nas redes sociais. Um tal bolo “tsunami”. Se ainda não sabe do que se trata (sorte sua!) dá um Google aí pra ver. Fico pasma e realmente brava com o que acabo de ver. Como é possível? Como é possível que surja algo assim em meio a essa realidade insana que estamos vivendo? Completamente na contramão de tudo. E fico triste e decepcionada…
Não ia falar nada, comentei internamente com alguns colegas de profissão, que também se mostraram horrorizados, mas deixei quieto. No entanto, essa semana dei uma aula como convidada na Faculdade de Gastronomia UNA, para falar sobre elaboração de cardápios de sobremesas. Fiquei muito emocionada e feliz em ver o interesse dos alunos, e como os sentimentos sobre a confeitaria tem mudado desde a época que me formei. E então me senti responsável… não tinha como deixar pra lá o que tinha visto, com tudo que conversamos na aula, com as expectativas dessa nova geração que entra no mercado.
Temos tantos profissionais incríveis no Brasil trabalhando duro pela valorização da confeitaria, para mostrar que é uma profissão de respeito, que tem base, estudo, conhecimento por trás. Que é parte da gastronomia, que é cultura alimentar, que é importante, que tem história, que é incrível dentro das suas incontáveis possibilidades. E me aparecem com essa nova “tendência”! Mais uma, dentre tantas outras que já passamos por aqui… Será que não evoluímos? Como exigir respeito no meio se não respeitamos nossa própria profissão.
Já passa da hora para muitos dos que se dizem confeiteiros abraçarem os conceitos já trabalhados na cozinha e se portarem como parte da gastronomia. Temos que acelerar o passo. Chega de reprodução e “tendências” que não agregam em conhecimento e criatividade. Precisamos de mais estudo e prática, conhecimento, entendimento da história, e todos os conceitos que já foram acima ditos. O sabor doce é sim parte da cultura brasileira e sua identidade, mas não significa que precisamos de uma confeitaria açucarada, impensada, e reprodutora de absurdos que não cabem mais na nossa realidade.
O gosto doce do brasileiro, tão falado e criticado por nós mesmos, é hoje uma justificativa ao conformismo para muitos que trabalham no meio. Ao mesmo tempo que reclamam dessa aparente característica, nada fazem para mudá-la. E dá-lhe leite em pó com creme de avelã, ultraprocessados, e invenções catastróficas e desrespeitosas como o tal bolo. “Ah! Mas é isso que vende!” Vende, pois quem faz não valoriza ou respeita a própria profissão, o estudo, a dedicação, o conhecimento por trás do que é ser realmente confeiteiro. Não vai além da reprodução de tendências, não se interessa em conhecer de verdade, estudar, pensar e criar. Enquanto o próprio “confeiteiro” se conformar com esse contexto não tem como pedir que o mercado mude. Cabe ao profissional a responsabilidade de quebrar esse ciclo, dar o exemplo, educar. E isso fará a própria indústria trabalhar para atender melhor a nossa profissão, algo que, desesperadamente, precisamos por aqui.
A ideia de uma sobremesa é surpreender, ser um momento de expectativa, deleite, emoção. Conformismo pelo gosto excessivo do açúcar faz com que o comensal se conforme também com qualquer coisa doce que lhe sirvam, até chegar ao total desinteresse pela confeitaria.
Confeiteiros, passa da hora de rever nossos conceitos, “o excesso perdeu seu lugar no mundo”.