O tal do leite condensado
Pariticipei de uma matéria super interessante para o Jornal O Tempo essa semana, sendo o tema uma reflexão sobre o uso do leite condensado na confeitaria brasileira. Uma repercursão ao artigo do projeto “O Joio e o Trigo” (leia na íntegra aqui para saber mais), que deu o que falar nas redes sociais dos confeiteiros!
Postei a matéria completa do “O Tempo” nas redes sociais, e aqui no blog você pode ler na íntegra as minhas respostas para essa entrevista. 🙂
Um tema importante e necessário, que há muito já deveria estar nas reflexões dos profissionais da área.
1 – O leite condensado é ingrediente onipresente na doçaria brasileira e as propagandas da época sempre forjaram isso (há uma que era incentivando a substituição do leite materno!). Qual a sua opinião sobre isso, esses preparos “tradicionais” com o uso quase obrigatório na cultura alimentar do leite condensado? Ele é essencial para determinadas receitas?
O leite condensado, na verdade, é um produto muito recente na história da formação da nossa culinária. Apesar da presença maciça do ingrediente em sobremesas brasileiras, essas são muito mais amplas, técnicas, e criativas do que se imagina, e passam pela mesma tríade de conhecimentos e mãos que formaram a culinária do nosso país: índios, africanos e europeus. Reduzir nossa doçaria à influência única de um ingrediente, que foi introduzido por um belo golpe de marketing, é fechar os olhos à riqueza que temos em mãos, silenciar as vozes que participaram da sua construção, e desvalorizar toda uma história, toda uma memória coletiva.
Dito isso, é inegável que esse ingrediente faz parte, também, desse caminho que passa pela construção da doçaria brasileira. Não sou contra o leite condensado, e tenho sim memórias afetivas com doces feitos com ele, que adoro e consumo até hoje. A questão é: existe um mundo doce muito além do leite condensado, e tirando talvez o brigadeiro (esse sim, um doce criado única e exclusivamente por causa desse ingrediente), não penso em nenhum outro preparo em que o leite condensado seja essencial ou “obrigatório”. Nossas ditas receitas tradicionais, vieram muito antes dele e não tem nenhuma necessidade do seu uso, a não ser a falta de conhecimento (e interesse) sobre as receitas originais, que demandam muito mais trabalho, estudo e prática para serem executadas.
2 – Que substitutos são possíveis dentro das receitas que, “obrigatoriamente”, possuem leite condensado?
Como comentei, a única receita que vejo obrigatoriedade na utilização do leite condensado é o brigadeiro, e talvez seus “derivados”, como uma palha italiana etc. A base dessa receita tem 3 ingredientes imutáveis: leite condensado, chocolate e manteiga. A partir daí temos variações por questão de gosto, como adicionar creme de leite, usar um chocolate mais ou menos intenso, aromatizantes, etc. Qualquer outra receita pode ser feita sem ele, e, provavelmente, substituindo apenas por leite e açúcar, como o caso do arroz-doce que enviei para vocês. A questão, mais uma vez, é a praticidade e falta de conhecimento sobre o que fazer se não tenho o leite condensado! Desaprendemos nossa doçaria, as sutilezas envolvidas no processo. Por exemplo, um doce sem leite condensado vai demorar mais a dar o ponto, tem que ficar mexendo e de olho por mais tempo, é um trabalho cansativo, quente. Tem que ter cuidados e conhecimento de texturas, cheiros, “pontos”, e isso a maioria, infelizmente, não tem interesse em saber.
3- O Brasil é o maior consumidor de leite condensado do mundo. De acordo com dados da própria empresa divulgados em 2020, são sete latas de leite Moça por segundo, o que dá 220 milhões de latas por ano. O quanto isso pode comprometer a confeitaria, o legado gastronômico e as gerações futuras?
Acho que já compromete muito. É uma dificuldade ser um profissional da área e ser demandada a todo tempo pelos mesmos produtos, mesmos sabores, realmente muito triste e desanimador. Claro que não são todos, mas é uma grande parcela que ainda temos que lidar no mercado consumidor. Fazemos um trabalho de formiguinhas mesmo, explicando, trazendo novas ideias, propondo alternativas e mostrando outros caminhos. E isso demanda muito estudo, muita experimentação, construção de referências, testes, pesquisas, anos de trabalho, que na maioria das vezes não é valorizado. Muitos que trabalham na área querem o conhecimento pronto, demandam receitas, mas não sabem o que fazer se algo dá errado. Não tem interesse em conhecimento, apenas em informações. Querem tudo pra ontem, pois “fulano faz”, “isso vende”, independente se faz sentido ou não.
E ainda caímos, também, na questão da transmissão desses conhecimentos dos doces tradicionais, que é outro problema. Brigadeiro e leite condensado são considerados 100% brasileiros, mesmo sendo um ingrediente de origem americana que foi introduzido por massificação de propaganda da indústria, colocando-se como parte da nossa identidade até mais que a doçaria tradicional. Todo brasileiro conhece, já comeu, e se reconhece no brigadeiro, como parte de uma coletividade, mas não podemos falar o mesmo de outros doces típicos.
Podemos encontrar registros de propagandas de leite condensado, a chegada do ingrediente ao país, das mudanças das latas de leite Moça, incluindo receitas práticas para as donas de casa, etc, mas pouco se acham registros de doces tradicionais. Não é a toa que toda uma geração tem referência de sobremesas feitas a base de um único ingrediente. Além dos registros, soma-se a isso a facilidade de reprodução, não sendo necessária uma transmissão de saber prático para confeccionar essas sobremesas.
Ah, mas e os cadernos de receitas antigos? São também registros, então porque a doçaria tradicional “não vingou”? Nem mesmo os cadernos de receitas são suficientes para essa transmissão. Além de falar apenas de parte dessa doçaria tradicional (geralmente a de influência europeia), deixando muita coisa de fora, não é raro pegarmos uma receita antiga de nossas avós e tentar replicar sem sucesso, se não tivemos o acesso físico desse saber, ao lado delas. O saber era passado, principalmente, oralmente, pela prática, pelo convívio, pelo dia a dia.
Nesse sentido, na doçaria tradicional temos uma memória que se perde no tempo, pois nem o registro escrito, e nem mesmo a transmissão oral a tem continuado, ou muito pouco, e em casos bem específicos. E do outro lado temos uma cultura facilitadora dos ultraprocessados na nossa confeitaria. Um simples exemplo: porque aprender a fazer um creme de confeiteiro do zero, se posso comprar uma mistura pronta da indústria, ou simplesmente fazer algo semelhante com leite condensado, que é muito mais prático? É muito difícil competir com isso, é necessário um discernimento que, apesar de “fácil”, isso não é bom, em nenhum aspecto da cadeia produtiva, e nem para construção da nossa identidade doceira.
Meu trabalho hoje, assim como de vários outros profissionais da área, é ajudar fazer ouvir essas vozes silenciadas, mudar o foco, mostrar as possibilidades e incentivar o questionamento, a curiosidade e o estudo dos que entram no mercado. O leite condensado já faz parte da nossa identidade doceira, e tudo bem. Mas ele deveria ser lembrado, apenas, como mais um ingrediente, e não como a única possibilidade, e nem a base da nossa doçaria.