Vejo mudanças a caminho…
*Texto publicado em dezembro de 2020
Desde pequena, quando vou a um restaurante, começo lendo o cardápio pelas sobremesas. Sempre foi assim, e faço até hoje. Escolho meus pratos de acordo com o que me apresentam para finalização. Se tem algo que muito me interessa, posso pular a entrada ou escolher um prato principal mais singelo para poder realmente me esbaldar no que adoro!
Com o passar dos anos, menos e menos vezes eu escolhia uma sobremesa. Não porque eu não queria um doce, mas pela falta de criatividade das opções. Mesmo em restaurantes considerados “de primeira”, a carta de sobremesas era uma decepção atrás da outra. O mesmo “petit gâteau”, o mesmo modismo da época, uma opção de “fruta da estação” (bastante questionável, pois nunca era da estação), ou sorvete (que na grande maioria das vezes era industrializado). Uma tristeza…não entendia porque o cardápio não tinha a mesma atenção para as sobremesas. Já ouvi Chefs dizendo que é uma parte do menu que vende pouco, então não dão atenção. Oi? Será mesmo? Quando passei a trabalhar no meio percebi que o problema era bem mais complexo.
Ano passado o Chef Diego Lozano fez um post “desabafo” que tocou num ponto essêncial! Ele falou da sua frustração em tentar trabalhar com empresas que não valorizam o trabalho que tem que ser feito na confeitaria. Ambiente de trabalho inadequado, sem refrigeração, utensílios e ambiente que não são separados de outras áreas da cozinha, equipamentos ultrapassados, dentre outros problemas. Como se o confeiteiro tivesse que se virar, “fazer mágica”, como se fazer doce fosse algo simples que não demanda uma estrutura ou um profissional competente. Às vezes o profissional confeiteiro até existe na empresa, tem vontade de fazer crescer e representar a casa, mas não consegue, pois seu ambiente de trabalho não é adequado, em vários sentidos.
Outra Chef que já se posicionou sobre a questão foi a Saiko Izawa, hoje professora de confeitaria do Cordon Bleu SP:
“Cozinheiros costumam achar que podem fazer sobremesa, mas não é assim. Confeitaria é uma opção e demanda qualificação. O confeiteiro não é um cozinheiro frustrado. Trata-se de uma escolha.”
É exatamente isso, uma escolha. E uma escolha que significa muito trabalho, estudo, prática e dedicação. Como (vejam só!) um Chef de cozinha.
O que muitos ainda não vêem é que cozinheiros e confeiteiros são profissionais complementares e deveriam trabalhar juntos, para levar o melhor possível ao cliente, fazer da experiência no restaurante uma coisa única e especial do início ao fim.
De lá pra cá já se vão quase 10 anos que estou no meio, e, apesar de tudo, confeso que recentemente estou sim vendo mudanças, o que muito me alegra! Mas ainda são pontuais e poucas. É ainda difícil ver restaurantes que levam a confeitaria a sério e como algo importante para a construção do estabelecimento. O mercado/indústria ainda não nos atende como deveria no âmbito profissional. Fora dos restaurantes vemos também confeitarias que se preocupam mais com o vender a qualquer custo e modismos, que criar algo realmente interessante, e que instigue o consumidor. Por outro lado, também vejo um movimento incrível acontecendo pela valorização da confeitaria, uma onda que tem crescido e ganhado apoio a cada dia.
Esse ano tivemos vários momentos importantes! Foram 3 edições do “Jantar de sobremesas”, participamos do “Chocolate week” (que aconteceu pela primeira vez em Bh!), eventos, muitas aulas, debates com apoio de instituições de ensino, reconhecimento de colegas com convites incríveis, como para o Festival de gastronomia no sul de Minas, a seletiva do prato junino, e minha própria coluna de confeitaria! E, para coroar, ainda tive a grande honra e oportunidade de comandar a praça de sobremesas de um restaurante pela primeira vez!
Talvez esse tenha sido um dos eventos mais especiais para mim no ano. Foram quase dois meses intensos de trabalho em que fiquei responsável pelas sobremesas do Casacor no restaurante da Agnes Farkasfolgyi. Ela, Chef com uma carreira excepcional, acompanhando toda minha trajetória, e tudo que aconteceu esse ano, viu que fazia mais que sentido abrir espaço no seu restaurante para outra profissional agregar a todo conhecimento que ela já tem.
Ela me viu como parceira, como alguém capaz de andar ao lado dela, me deu carta branca para as minhas criações, e me colocou de frente ao público, num espaço só meu para mostrar meu trabalho. Não houve competição, não houve briga de ego, não houve atritos. Houve respeito, confiança, incentivo, colaboração, troca, orgulho em fazer algo excepcional e fora da caixa em BH. Os elogios às sobremesas chegavam a ela com a mesma alegria que os dos pratos, e ela fazia questão de dizer quem fez, me chamar à mesa e dar me dar esse espaço. Foi uma experiência incrível e de muito significado.
Vimos clientes indo apenas para provar as sobremesas, outros que não tinham o hábito de comer sobremesas e fizeram questão de provar, por serem inusitadas e diferentes do que viam no cenário da cidade. Outros que comeram sem esperar grande coisa e se encantaram! Encerrando a refeição com alegria, com aquele arremate que abraça toda a experiência e deixa lembranças felizes. Ao final do evento uma brigada exausta e em êxtase de alegria e dever cumprido com louvor! Novos amigos de profissão e para a vida! E projetos incríveis a caminho!
O que eu queria com coluna desse mês é exatamente falar como uma ideia pode realmente mudar o cenário de muita coisa! Um incômodo que me perseguia na profissão há um bom tempo, me fez sair da cadeira e procurar formas de mudar a situação. Essas inquietudes não são só minhas, divido com vários colegas de profissão, que também seguem promovendo mudanças, como já comentei também no primeiro texto (“A confeitaria pede passagem”).
Esse foi um ano muito generoso para mim profissionalmente, realmente incrível e arrebatador. Foi resultado de um trabalho persistente, de um questionamento incessante, e de um movimento que saiu do papel e da vontade em meados do ano passado, e, também, pelo interesse. De colegas, em me ajudar a concretizar ideias, do público, em querer conhecer mais meu trabalho, e meu, em encarar a caminhada. E pude ver resultados!
De uma turma de faculdade de gastronomia (há quase 10 anos) em que eu era a única interessada em confeitaria (e sofria deboches por isso), vejo hoje alunos com olhos brilhando pelo tema, e ocupando parcela significativa das salas de aula, interessados e buscando mais. Para mim, não tem preço essa mudança. Sou extremamente grata a tudo que consegui alcançar esse ano, e isso me mostrou novas oportunidades e expectativas.
Estabelecimentos que já notaram o poder de uma sobremesa bem elaborada e executada estão saindo a frente. Confeiteiros que perceberam que devem buscar mais conhecimento, não só técnico, mas sobre nossa história, sobre cultura alimentar, o que pode vir daí, sair da caixa, criar e pensar, serão os destaques que vão guiar as mudanças. Chefs de cozinha que perceberam que podem e devem dividir o espaço e reconhecimento com profissionais da confeitaria só terão a ganhar e é lindo de se ver! O resultado final encanta, como já acontece em alguns restaurantes pelo Brasil. É uma alegria voltar a ler os cardápios pela sobremesa, com curiosidade e interesse, e se surpreender!
Espero que 2020 seja ainda mais desafiador (para evoluirmos!) e incrível para nossa confeitaria, e eu faço questão de participar dessa mudança. Nossa gastronomia, nossa CULTURA ALEMENTAR, só tem a ganhar com o que vem por aí, e BH está no olho do furacão! a Cidade Criativa da Gastronomia pela UNESCO nos dá ainda mais esse impulso e responsabilidade para mostrar toda nossa capacidade. Que venha um novo ano pela confeitaria no Brasil!