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O tal do leite condensado

Pariticipei de uma matéria super interessante para o Jornal O Tempo essa semana, sendo o tema uma reflexão sobre o uso do leite condensado na confeitaria brasileira. Uma repercursão ao artigo do projeto “O Joio e o Trigo” (leia na íntegra aqui para saber mais), que deu o que falar nas redes sociais dos confeiteiros!

Postei a matéria completa do “O Tempo” nas redes sociais, e aqui no blog você pode ler na íntegra as minhas respostas para essa entrevista. 🙂

Um tema importante e necessário, que há muito já deveria estar nas reflexões dos profissionais da área.

1 – O leite condensado é ingrediente onipresente na doçaria brasileira e as propagandas da época sempre forjaram isso (há uma que era incentivando a substituição do leite materno!). Qual a sua opinião sobre isso, esses preparos “tradicionais” com o uso quase obrigatório na cultura alimentar do leite condensado? Ele é essencial para determinadas receitas?

O leite condensado, na verdade, é um produto muito recente na história da formação da nossa culinária. Apesar da presença maciça do ingrediente em sobremesas brasileiras, essas são muito mais amplas, técnicas, e criativas do que se imagina, e passam pela mesma tríade de conhecimentos e mãos que formaram a culinária do nosso país: índios, africanos e europeus. Reduzir nossa doçaria à influência única de um ingrediente, que foi introduzido por um belo golpe de marketing, é fechar os olhos à riqueza que temos em mãos, silenciar as vozes que participaram da sua construção, e desvalorizar toda uma história, toda uma memória coletiva.

Dito isso, é inegável que esse ingrediente faz parte, também, desse caminho que passa pela construção da doçaria brasileira. Não sou contra o leite condensado, e tenho sim memórias afetivas com doces feitos com ele, que adoro e consumo até hoje. A questão é: existe um mundo doce muito além do leite condensado, e tirando talvez o brigadeiro (esse sim, um doce criado única e exclusivamente por causa desse ingrediente), não penso em nenhum outro preparo em que o leite condensado seja essencial ou “obrigatório”. Nossas ditas receitas tradicionais, vieram muito antes dele e não tem nenhuma necessidade do seu uso, a não ser a falta de conhecimento (e interesse) sobre as receitas originais, que demandam muito mais trabalho, estudo e prática para serem executadas.

2 – Que substitutos são possíveis dentro das receitas que, “obrigatoriamente”, possuem leite condensado?

Como comentei, a única receita que vejo obrigatoriedade na utilização do leite condensado é o brigadeiro, e talvez seus “derivados”, como uma palha italiana etc. A base dessa receita tem 3 ingredientes imutáveis: leite condensado, chocolate e manteiga. A partir daí temos variações por questão de gosto, como adicionar creme de leite, usar um chocolate mais ou menos intenso, aromatizantes, etc. Qualquer outra receita pode ser feita sem ele, e, provavelmente, substituindo apenas por leite e açúcar, como o caso do arroz-doce que enviei para vocês. A questão, mais uma vez, é a praticidade e falta de conhecimento sobre o que fazer se não tenho o leite condensado! Desaprendemos nossa doçaria, as sutilezas envolvidas no processo. Por exemplo, um doce sem leite condensado vai demorar mais a dar o ponto, tem que ficar mexendo e de olho por mais tempo, é um trabalho cansativo, quente. Tem que ter cuidados e conhecimento de texturas, cheiros, “pontos”, e isso a maioria, infelizmente, não tem interesse em saber.

3- O Brasil é o maior consumidor de leite condensado do mundo. De acordo com dados da própria empresa divulgados em 2020, são sete latas de leite Moça por segundo, o que dá 220 milhões de latas por ano. O quanto isso pode comprometer a confeitaria, o legado gastronômico e as gerações futuras?

Acho que já compromete muito. É uma dificuldade ser um profissional da área e ser demandada a todo tempo pelos mesmos produtos, mesmos sabores, realmente muito triste e desanimador. Claro que não são todos, mas é uma grande parcela que ainda temos que lidar no mercado consumidor. Fazemos um trabalho de formiguinhas mesmo, explicando, trazendo novas ideias, propondo alternativas e mostrando outros caminhos. E isso demanda muito estudo, muita experimentação, construção de referências, testes, pesquisas, anos de trabalho, que na maioria das vezes não é valorizado. Muitos que trabalham na área querem o conhecimento pronto, demandam receitas, mas não sabem o que fazer se algo dá errado. Não tem interesse em conhecimento, apenas em informações. Querem tudo pra ontem, pois “fulano faz”, “isso vende”, independente se faz sentido ou não.

E ainda caímos, também, na questão da transmissão desses conhecimentos dos doces tradicionais, que é outro problema. Brigadeiro e leite condensado são considerados 100% brasileiros, mesmo sendo um ingrediente de origem americana que foi introduzido por massificação de propaganda da indústria, colocando-se como parte da nossa identidade até mais que a doçaria tradicional. Todo brasileiro conhece, já comeu, e se reconhece no brigadeiro, como parte de uma coletividade, mas não podemos falar o mesmo de outros doces típicos.

Podemos encontrar registros de propagandas de leite condensado, a chegada do ingrediente ao país, das mudanças das latas de leite Moça, incluindo receitas práticas para as donas de casa, etc, mas pouco se acham registros de doces tradicionais. Não é a toa que toda uma geração tem referência de sobremesas feitas a base de um único ingrediente. Além dos registros, soma-se a isso a facilidade de reprodução, não sendo necessária uma transmissão de saber prático para confeccionar essas sobremesas.

Ah, mas e os cadernos de receitas antigos? São também registros, então porque a doçaria tradicional “não vingou”? Nem mesmo os cadernos de receitas são suficientes para essa transmissão. Além de falar apenas de parte dessa doçaria tradicional (geralmente a de influência europeia), deixando muita coisa de fora, não é raro pegarmos uma receita antiga de nossas avós e tentar replicar sem sucesso, se não tivemos o acesso físico desse saber, ao lado delas. O saber era passado, principalmente, oralmente, pela prática, pelo convívio, pelo dia a dia.

Nesse sentido, na doçaria tradicional temos uma memória que se perde no tempo, pois nem o registro escrito, e nem mesmo a transmissão oral a tem continuado, ou muito pouco, e em casos bem específicos. E do outro lado temos uma cultura facilitadora dos ultraprocessados na nossa confeitaria. Um simples exemplo: porque aprender a fazer um creme de confeiteiro do zero, se posso comprar uma mistura pronta da indústria, ou simplesmente fazer algo semelhante com leite condensado, que é muito mais prático? É muito difícil competir com isso, é necessário um discernimento que, apesar de “fácil”, isso não é bom, em nenhum aspecto da cadeia produtiva, e nem para construção da nossa identidade doceira.

Meu trabalho hoje, assim como de vários outros profissionais da área, é ajudar fazer ouvir essas vozes silenciadas, mudar o foco, mostrar as possibilidades e incentivar o questionamento, a curiosidade e o estudo dos que entram no mercado. O leite condensado já faz parte da nossa identidade doceira, e tudo bem. Mas ele deveria ser lembrado, apenas, como mais um ingrediente, e não como a única possibilidade, e nem a base da nossa doçaria.

O doce e o tempo

“A arte culinária é algo que se cria e recria continuamente, como qualquer conhecimento humano, segue pela história fazendo trocas com o tempo. (…) Quanto mais expressamos e interpretamos a nossa cultura, mais universais nos tornamos.” (Dona Lucinha)1

“Tradição não é permanência, tradição é transmissão.” Começa assim o Professor José Newton sua fala na aula sobre Doces de tacho no @sacolabrasileira. Uma aula linda e super necessária, que misturou história, receitas, saberes, e muita reflexão. Meus estudos para conhecer e tentar compreender melhor a trajetória doceira em Minas tem me levado a vários questionamentos e descobertas. Pensar e estudar sobre “tradição” e seus significados tem sido um exercício muito surpreendente, e essa frase foi mais uma centelha que despertou novas imagens, e “viagens filosóficas”.

O que é transmissão senão uma permanência pelo tempo, conexões. Algo que transita e cria vínculos, entre pessoas, culturas, mundos, tempos… Uma tradição é um vínculo de tempo, uma continuidade de algo que se dá valor, e, portanto, permanece. No entanto, por ser uma continuidade, não é uma permanência em sentido fixo, e sim, pressupõe movimento, transformação pelas várias passagens e personagens que a vivenciaram. Tenho pensado a doçaria muito dessa forma. Como parte de uma identidade, ela, também, continua em construção, em transformação, acrescentando os saberes de cada tempo, enquanto se mantém.

O tempo…se tem algo que seja mais a essência da tradição da doçaria é o tempo. Ela é a própria conexão entre passado e presente, e espera para o futuro. Doce é memória, conecta e desperta o que já foi. Doce é conserva, que vence a barreira do tempo, para ser saboreado pelo futuro.

Quem faz doce brinca e trabalha com o tempo, é o próprio Cronos! Quem faz doce acredita na sua própria invencibilidade, “só faz compotas quem acredita que vai vencer o tempo e comê-las no futuro”, já dizia algum sábio. E o elemento que faz tudo isso possível é o açúcar.

Açúcar e tempo são quase pleonasmos. Açúcar traz temporalidade, açúcar conserva: conserva o doce, a fruta, as estações, o saber, os sabores, conserva memórias, momentos. São tantas as nuances que permeiam o doce e sua tradição, mas o tempo com certeza é das mais fascinantes.

O fazer do doce leva tempo, e o doce pronto leva o tempo…

1NUNES, Maria Lúcia Clementino; NUNES, Márcia Clementino. História da arte da cozinha mineira por Dona Lucinha. 5. ed. Belo Horizonte: Rona, 2018.

“O excesso perdeu seu lugar no mundo”

*Texto publicado em maio de 2020

Há pouco mais de uma semana li uma entrevista com a Chef Roberta Sudbrack, sobre a situação atual e os pensamentos dela, e uma frase que ela disse ficou cravada: “O excesso perdeu seu lugar no mundo”. Não tenho como não concordar inteiramente! Não tem como não pensar que o “normal” pré-pandemia pode ser o que nos trouxe até aqui. E que muita coisa terá que ser revista nas relações de consumo e mercado. É minha visão e o que tenho matutado ultimamente. Por outro lado, a pandemia parece acelerar alguns movimentos que já vinham acontecendo pela gastronomia, e isso é positivo.

O mundo globalizado rompeu barreiras e aproximou as pessoas, mas também homogenizou muita coisa. Consequentemente, vivemos também uma perda de identidades e contato com nossas raízes. A pandemia fez acelerar a já iniciada movimentação de resgate desse contato com nossa cultura. Quando nos sentimos perdidos, voltamos para aquilo que nos é familiar e seguro, tentando fugir do cenário de incerteza instalado. Buscamos novamente o sentimento de pertencimento, e a comida é com certeza o caminho mais rápido para essa conexão. Não é a toa que lives incontáveis para compartilhar receitas surgiram.

Fala-se da valorização do produto e produtor locais, respeito aos ingredientes, conhecer seu alimento (de onde vem e como é produzido), consumo consciente etc, mais do que nunca.

“O excesso perdeu seu lugar no mundo”, ressoa a frase na minha cabeça.

E então, poucos dias depois, vejo uma atrocidade doce (não chamo de confeitaria, pois não é) surgir nas redes sociais. Um tal bolo “tsunami”. Se ainda não sabe do que se trata (sorte sua!) dá um Google aí pra ver. Fico pasma e realmente brava com o que acabo de ver. Como é possível? Como é possível que surja algo assim em meio a essa realidade insana que estamos vivendo? Completamente na contramão de tudo. E fico triste e decepcionada…

Não ia falar nada, comentei internamente com alguns colegas de profissão, que também se mostraram horrorizados, mas deixei quieto. No entanto, essa semana dei uma aula como convidada na Faculdade de Gastronomia UNA, para falar sobre elaboração de cardápios de sobremesas. Fiquei muito emocionada e feliz em ver o interesse dos alunos, e como os sentimentos sobre a confeitaria tem mudado desde a época que me formei. E então me senti responsável… não tinha como deixar pra lá o que tinha visto, com tudo que conversamos na aula, com as expectativas dessa nova geração que entra no mercado.

Temos tantos profissionais incríveis no Brasil trabalhando duro pela valorização da confeitaria, para mostrar que é uma profissão de respeito, que tem base, estudo, conhecimento por trás. Que é parte da gastronomia, que é cultura alimentar, que é importante, que tem história, que é incrível dentro das suas incontáveis possibilidades. E me aparecem com essa nova “tendência”! Mais uma, dentre tantas outras que já passamos por aqui… Será que não evoluímos? Como exigir respeito no meio se não respeitamos nossa própria profissão.

Já passa da hora para muitos dos que se dizem confeiteiros abraçarem os conceitos já trabalhados na cozinha e se portarem como parte da gastronomia. Temos que acelerar o passo. Chega de reprodução e “tendências” que não agregam em conhecimento e criatividade. Precisamos de mais estudo e prática, conhecimento, entendimento da história, e todos os conceitos que já foram acima ditos. O sabor doce é sim parte da cultura brasileira e sua identidade, mas não significa que precisamos de uma confeitaria açucarada, impensada, e reprodutora de absurdos que não cabem mais na nossa realidade.

O gosto doce do brasileiro, tão falado e criticado por nós mesmos, é hoje uma justificativa ao conformismo para muitos que trabalham no meio. Ao mesmo tempo que reclamam dessa aparente característica, nada fazem para mudá-la. E dá-lhe leite em pó com creme de avelã, ultraprocessados, e invenções catastróficas e desrespeitosas como o tal bolo. “Ah! Mas é isso que vende!” Vende, pois quem faz não valoriza ou respeita a própria profissão, o estudo, a dedicação, o conhecimento por trás do que é ser realmente confeiteiro. Não vai além da reprodução de tendências, não se interessa em conhecer de verdade, estudar, pensar e criar. Enquanto o próprio “confeiteiro” se conformar com esse contexto não tem como pedir que o mercado mude. Cabe ao profissional a responsabilidade de quebrar esse ciclo, dar o exemplo, educar. E isso fará a própria indústria trabalhar para atender melhor a nossa profissão, algo que, desesperadamente, precisamos por aqui.

A ideia de uma sobremesa é surpreender, ser um momento de expectativa, deleite, emoção. Conformismo pelo gosto excessivo do açúcar faz com que o comensal se conforme também com qualquer coisa doce que lhe sirvam, até chegar ao total desinteresse pela confeitaria.

Confeiteiros, passa da hora de rever nossos conceitos, “o excesso perdeu seu lugar no mundo”.

Cópia e inspiração.

Quando entramos no ramo da gastronomia, principalmente confeitaria, talvez o que mais ouvimos falar é sobre “cópias”, algo que chega a criar discussões acaloradas. Minha ideia nesse post é bem mais fazer questionamentos do que dar repostas. Acho que é um tema extremamente relevante e demanda reflexão.

Que fique claro que falamos aqui de receitas, e não cópia de identidade/marca, ou uso de fotos alheias para vender seu produto etc, o que já são problemas bem diferentes e com questões legais. Quero trazer a reflexão: Existe diferença entre inspiração e cópia? Existe cópia? Se pegamos uma receita clássica e a reproduzimos, ou ainda, começamos a comercializar, é cópia? Depende da receita? São questões que qualquer pessoa do meio já se fez ou já passou em algum momento.

Vejamos uma receita de quindim. Reproduzi-la e comercializá-la provavelmente não vai levantar questionamentos. O mesmo se uma pessoa abrir uma loja só de macarons, ou de brigadeiros, bem-casados, brownies etc. Essas receitas foram criadas em algum momento, por alguém. Se faço uma “tarte tatin” no meu atelier, não faço referência às irmãs Tatin da França, e ninguém questiona isso. Será porque é uma receita considerada clássica? E a questão estaria nas novas criações? Existem novas criações? É de se pensar…

Algumas pessoas questionam a cópia estética de um bolo ou torta, por exemplo, mesmo que a receita não seja a mesma. Seria a cópia do visual o problema então? Mas quanto a reprodução de uma receita? Até onde é o limite?

Há os que consideram que mudar um ingrediente numa receita já a faz diferente da original de onde tiraram. Ou que a “mão” de cada um acaba dando resultados diferentes, então não existiria cópia. Não concordo inteiramente, pois a receita, a meu ver, é muito mais a estrutura do que é feito, proporções, conceito etc, que simplesmente a escolha dos ingredientes (que também fazem parte). Acho que a menção do autor que te inspirou (se esse for o caso, pois coincidências acontecem muito nesse meio também) é sempre de bom tom, uma questão de respeito ao colega de profissão.

Por outro lado, trabalhando no meio também como professora, tive que aprender a ser mais leve com essas questões. Minhas receitas (que são também uma mistura de influências de memórias e experiências próprias, estudos da faculdade ou de chefs que admiro) serão reproduzidas assim que a aula acabar. E eu tenho que estar ok sobre isso, ou enlouqueceria, e realmente está tudo bem! Ver os resultados dos alunos é incrível e recompensador! E eu passo para o próximo passo, vou criar coisas novas, montar aulas novas, me força a inovar e continuar estudando.

Hoje vejo a “cópia” como parte do processo evolutivo de criação. A verdade é que todos começamos copiando alguém! Seja uma receita da avó ou da mãe, e, depois, de profissionais que admiramos. Nessa fase, cópia e inspiração se misturam e isso faz parte do processo criativo a meu ver. Tentamos reproduzir o que admiramos, até para saber se somos capazes de fazer algo igual. É a fase das inseguranças, do “será que eu consigo fazer isso?”, e você copia, tenta reproduzir exatamente aquilo que te fascina.

Com o tempo, o normal é perder essas “muletas”, que devem ir abrindo espaço para o processo criativo, que é exatamente isso, um processo. Não é dom. Criatividade, para mim, é um esforço diário, você constrói, busca, tenta, conhece, experimenta, estuda, testa diariamente. E isso acaba fazendo parte do seu dia a dia profissional. No entanto, as influências não cessam, ainda mais em um mundo como o de hoje, em que a informação está a um click de distância, e sabemos que ninguém mais inventa a roda.

Me peguei pensando mais sobre o assunto e me lembrei do estudo que meu pai fez sobre a “História das construções”. Anos de pesquisa que se transformaram em 4 volumes de livros incríveis falando das construções/arquitetura/engenharia das várias civilizações que já andaram pelo mundo. O ponto central da pesquisa é exatamente como a mente humana encontra soluções semelhantes, se não idênticas, para os problemas de engenharia, mesmo dentre civilizações que nunca se encontraram, seja pela distância geográfica, ou pela linha do tempo. Ele demonstrou que, mesmo separadas por milhares de quilômetros ou por séculos, sem troca de informações ou relacionamento de nenhuma forma, algumas civilizações humanas se depararam com os mesmos problemas de engenharia em algum momento, e as soluções foram as mesmas.

Mas o que isso tem a ver com confeitaria? Eu acho que muito (aliás, acho que a confeitaria conversa diretamente com várias outras áreas de conhecimento, mas isso é assunto para outro post.)! Me faz pensar como a mente humana, por mais engenhosa e criativa que possa ser, segue alguns parâmetros. Numa época em que comunicação nem sequer era possível, “cópias” aconteceram. Hoje, em um mundo totalmente conectado, é praticamente impossível, mesmo que inconscientemente, não ser influenciado em nossas ideias.

Essa perspectiva acabou me dando outra visão no meu trabalho no atelier também. Percebi que quanto menos eu foco no trabalho alheio, ou o que estão fazendo, mais eu trabalho feliz, e mais minha criatividade flui. Sei quais são meu conceito e identidade na confeitaria, sei aonde quero chegar, o que gosto de fazer. E trabalho tentando evoluir sempre, eu com meu eu anterior. Progredir o meu trabalho com o que eu fazia a tempos atrás.

Quando desviamos nosso foco para preocupações como “alguém está me copiando”, ou se “fizeram minha receita”, etc, perdemos um tempo precioso em que poderíamos estar crescendo na profissão. Se tem verdade no seu trabalho, se você acredita nele, no seu conceito, na sua identidade, cópias são pouco demais para te tirar do sério. Acho que, mais que se perguntar se “existe cópia”, é melhor se perguntar se vale esquentar a cabeça sobre. Vale seu tempo e esforço?

Podemos apontar o dedo para muita coisa “por fora” sobre a valorização da confeitaria no Brasil. Falta reconhecimento, falta investimento do mercado, apoio nas faculdades de gastronomia, dentre outros problemas. Mas falta troca no nosso meio também, falta compartilhamento, falta interesse em crescer juntos, falta mais humildade, e menos competição. E acho que essa discussão acaba caindo bem nesse ponto. E você? O que acha a respeito?

Vejo mudanças a caminho…

*Texto publicado em dezembro de 2020

Desde pequena, quando vou a um restaurante, começo lendo o cardápio pelas sobremesas. Sempre foi assim, e faço até hoje. Escolho meus pratos de acordo com o que me apresentam para finalização. Se tem algo que muito me interessa, posso pular a entrada ou escolher um prato principal mais singelo para poder realmente me esbaldar no que adoro!

Com o passar dos anos, menos e menos vezes eu escolhia uma sobremesa. Não porque eu não queria um doce, mas pela falta de criatividade das opções. Mesmo em restaurantes considerados “de primeira”, a carta de sobremesas era uma decepção atrás da outra. O mesmo “petit gâteau”, o mesmo modismo da época, uma opção de “fruta da estação” (bastante questionável, pois nunca era da estação), ou sorvete (que na grande maioria das vezes era industrializado). Uma tristeza…não entendia porque o cardápio não tinha a mesma atenção para as sobremesas. Já ouvi Chefs dizendo que é uma parte do menu que vende pouco, então não dão atenção. Oi? Será mesmo? Quando passei a trabalhar no meio percebi que o problema era bem mais complexo.

Ano passado o Chef Diego Lozano fez um post “desabafo” que tocou num ponto essêncial! Ele falou da sua frustração em tentar trabalhar com empresas que não valorizam o trabalho que tem que ser feito na confeitaria. Ambiente de trabalho inadequado, sem refrigeração, utensílios e ambiente que não são separados de outras áreas da cozinha, equipamentos ultrapassados, dentre outros problemas. Como se o confeiteiro tivesse que se virar, “fazer mágica”, como se fazer doce fosse algo simples que não demanda uma estrutura ou um profissional competente. Às vezes o profissional confeiteiro até existe na empresa, tem vontade de fazer crescer e representar a casa, mas não consegue, pois seu ambiente de trabalho não é adequado, em vários sentidos.

Outra Chef que já se posicionou sobre a questão foi a Saiko Izawa, hoje professora de confeitaria do Cordon Bleu SP:

“Cozinheiros costumam achar que podem fazer sobremesa, mas não é assim. Confeitaria é uma opção e demanda qualificação. O confeiteiro não é um cozinheiro frustrado. Trata-se de uma escolha.”

É exatamente isso, uma escolha. E uma escolha que significa muito trabalho, estudo, prática e dedicação. Como (vejam só!) um Chef de cozinha.

O que muitos ainda não vêem é que cozinheiros e confeiteiros são profissionais complementares e deveriam trabalhar juntos, para levar o melhor possível ao cliente, fazer da experiência no restaurante uma coisa única e especial do início ao fim.

De lá pra cá já se vão quase 10 anos que estou no meio, e, apesar de tudo, confeso que recentemente estou sim vendo mudanças, o que muito me alegra! Mas ainda são pontuais e poucas. É ainda difícil ver restaurantes que levam a confeitaria a sério e como algo importante para a construção do estabelecimento. O mercado/indústria ainda não nos atende como deveria no âmbito profissional. Fora dos restaurantes vemos também confeitarias que se preocupam mais com o vender a qualquer custo e modismos, que criar algo realmente interessante, e que instigue o consumidor. Por outro lado, também vejo um movimento incrível acontecendo pela valorização da confeitaria, uma onda que tem crescido e ganhado apoio a cada dia.

Esse ano tivemos vários momentos importantes! Foram 3 edições do “Jantar de sobremesas”, participamos do “Chocolate week” (que aconteceu pela primeira vez em Bh!), eventos, muitas aulas, debates com apoio de instituições de ensino, reconhecimento de colegas com convites incríveis, como para o Festival de gastronomia no sul de Minas, a seletiva do prato junino, e minha própria coluna de confeitaria! E, para coroar, ainda tive a grande honra e oportunidade de comandar a praça de sobremesas de um restaurante pela primeira vez!

Talvez esse tenha sido um dos eventos mais especiais para mim no ano. Foram quase dois meses intensos de trabalho em que fiquei responsável pelas sobremesas do Casacor no restaurante da Agnes Farkasfolgyi. Ela, Chef com uma carreira excepcional, acompanhando toda minha trajetória, e tudo que aconteceu esse ano, viu que fazia mais que sentido abrir espaço no seu restaurante para outra profissional agregar a todo conhecimento que ela já tem.

Ela me viu como parceira, como alguém capaz de andar ao lado dela, me deu carta branca para as minhas criações, e me colocou de frente ao público, num espaço só meu para mostrar meu trabalho. Não houve competição, não houve briga de ego, não houve atritos. Houve respeito, confiança, incentivo, colaboração, troca, orgulho em fazer algo excepcional e fora da caixa em BH. Os elogios às sobremesas chegavam a ela com a mesma alegria que os dos pratos, e ela fazia questão de dizer quem fez, me chamar à mesa e dar me dar esse espaço. Foi uma experiência incrível e de muito significado.

Vimos clientes indo apenas para provar as sobremesas, outros que não tinham o hábito de comer sobremesas e fizeram questão de provar, por serem inusitadas e diferentes do que viam no cenário da cidade. Outros que comeram sem esperar grande coisa e se encantaram! Encerrando a refeição com alegria, com aquele arremate que abraça toda a experiência e deixa lembranças felizes. Ao final do evento uma brigada exausta e em êxtase de alegria e dever cumprido com louvor! Novos amigos de profissão e para a vida! E projetos incríveis a caminho!

O que eu queria com coluna desse mês é exatamente falar como uma ideia pode realmente mudar o cenário de muita coisa! Um incômodo que me perseguia na profissão há um bom tempo, me fez sair da cadeira e procurar formas de mudar a situação. Essas inquietudes não são só minhas, divido com vários colegas de profissão, que também seguem promovendo mudanças, como já comentei também no primeiro texto (“A confeitaria pede passagem”).

Esse foi um ano muito generoso para mim profissionalmente, realmente incrível e arrebatador. Foi resultado de um trabalho persistente, de um questionamento incessante, e de um movimento que saiu do papel e da vontade em meados do ano passado, e, também, pelo interesse. De colegas, em me ajudar a concretizar ideias, do público, em querer conhecer mais meu trabalho, e meu, em encarar a caminhada. E pude ver resultados!

De uma turma de faculdade de gastronomia (há quase 10 anos) em que eu era a única interessada em confeitaria (e sofria deboches por isso), vejo hoje alunos com olhos brilhando pelo tema, e ocupando parcela significativa das salas de aula, interessados e buscando mais. Para mim, não tem preço essa mudança. Sou extremamente grata a tudo que consegui alcançar esse ano, e isso me mostrou novas oportunidades e expectativas.

Estabelecimentos que já notaram o poder de uma sobremesa bem elaborada e executada estão saindo a frente. Confeiteiros que perceberam que devem buscar mais conhecimento, não só técnico, mas sobre nossa história, sobre cultura alimentar, o que pode vir daí, sair da caixa, criar e pensar, serão os destaques que vão guiar as mudanças. Chefs de cozinha que perceberam que podem e devem dividir o espaço e reconhecimento com profissionais da confeitaria só terão a ganhar e é lindo de se ver! O resultado final encanta, como já acontece em alguns restaurantes pelo Brasil. É uma alegria voltar a ler os cardápios pela sobremesa, com curiosidade e interesse, e se surpreender!

Espero que 2020 seja ainda mais desafiador (para evoluirmos!) e incrível para nossa confeitaria, e eu faço questão de participar dessa mudança. Nossa gastronomia, nossa CULTURA ALEMENTAR, só tem a ganhar com o que vem por aí, e BH está no olho do furacão! a Cidade Criativa da Gastronomia pela UNESCO nos dá ainda mais esse impulso e responsabilidade para mostrar toda nossa capacidade. Que venha um novo ano pela confeitaria no Brasil!

Para valorizar é preciso conhecer… e reconhecer…

* Texto publicado em fevereiro de 2020 na coluna AÇÚCAR (Site territórios gastronômicos)

Depois de algumas semanas sumida, estou de volta! Tirei o mês de janeiro para organizar o ano que entra, e refletir sobre os próximos passos. Quem me acompanha pelas redes sociais já viu que entramos com novidades! Tem agenda de cursos, aulas ao vivo, eventos, e até roteiro de viagens pela confeitaria. E por aqui, continuarei a trazer assuntos que considero relevantes na área, tentando sempre levantar questionamentos e reflexões, mas, também, momentos de leveza e afeto, que só um doce pode proporcionar. 🙂

Já começamos o ano com um assunto polêmico, e que tem muito ainda o que ser falado. Deu até “live” com direito a muita interação e questionamento: uma discussão muito importante sobre o uso do tacho de cobre na doçaria mineira, sobre legislações que não conversam com quem vive a realidade do assunto, proibições sem fundamento, mitos que precisam ser esclarecidos. Tenho percebido que tudo passa, mais uma vez, pela educação/conhecimento, mas também por um fator muito importante: o reconhecimento. “Valorização”, “identidade”, “cultura” são termos de peso e importância, mas que, para mim, só fizeram sentido depois que entendi que tem a ver com o reconhecer valor no que é nosso, e se reconhecer como parte disso. Como assim?

Já contei por aqui sobre minha trajetória com a confeitaria, minha formação na França, e como vejo, hoje, que minha experiência fora me aproximou muito dos objetivos que busco por aqui. Já falei o quanto admiro a confeitaria francesa, além das técnicas, pelo que ela representa no seu país, como é valorizada e admirada, e levada muito a sério por lá, e como eu gostaria de ver isso acontecendo por aqui também. Mas nem sempre pensei assim… Passei um tempo acreditando mesmo que o que vem de fora é sempre melhor, o clássico “complexo de vira-lata”. Mudar essa perspectiva não é fácil, compreender nosso potencial e ver o quanto nossa história é rica, é um exercício constante de reconhecimento, de olhar pra dentro e se assumir como parte dessa identidade.

Durante minha estadia na França, tive a oportunidade de estudar ao lado de pessoas de várias partes do mundo, e isso foi, com certeza, uma das coisas mais incríveis dessa experiência. Uma troca de valores inestimável que nos faz questionar muitas coisas, aprender sobre tolerância, respeito, autoconhecimento. Alguns desses colegas se tornaram grandes amigos e foram muito importantes na minha trajetória por lá. Equatorianos, norte americanos, colombianos, venezuelanos, argentinos, chineses, turcos, nigerianos, gregos, brasileiros de diversas regiões, britânicos, dentre outras nacionalidades que dividiram as bancadas, salas de aulas, perrengues, viagens, baladas, e experiências nesse país, que nos recebeu para um período de imersão e estudos sobre sua própria cultura.

Um deles foi um colega grego, o Ilias, que, coincidentemente, tinha uma fascinação enorme pelo Brasil, e sonhava em conhecer nossas terras. Seu pai era marinheiro e viajou diversas vezes para cá, o que lhe rendeu belas histórias que contava aos filhos sobre nosso país, sempre de forma muito encantadora e afetuosa. Ele me contou que sonhava em conhecer mais sobre nossa cultura e poder provar da nossa culinária, que parecia aos olhos dele algo realmente incrível! Como não podia deixar de ser, o orgulho mineiro entrou em cena e contei a ele das delícias da nossa culinária, nossa ligação com uma terra de montanhas e muita história, das influências e heranças do colonialismo nos sabores, das comidas “tradicionais”, e muita coisa que nos permeia. Cheguei a levá-lo, junto com outros colegas, a um restaurante brasileiro para provar alguns quitutes, e encomendei dos parentes que foram me visitar outras guloseimas para apresentar por lá (doces, polpas de frutas típicas, cachaças…), e fiz também algumas receitas afetivas, que todo brasileiro fora de casa por muito tempo precisa de vez em quando: pão de queijo (adaptado, claro), canjica, bolo de cenoura com chocolate, e brigadeiro, para citar alguns.

Toda vez que falava da nossa comida enchia o peito de orgulho, e o Ilias sempre muito entusiasmado em provar de tudo que eu levava e em conhecer mais. Ele, por sua vez, também me trazia delícias da terra de Sócrates e dos Deuses, fazendo desse intercâmbio algo realmente rico e sensacional!

Foi então que um dia comentei com ele sobre os preparativos do meu casamento (estava noiva na época), e das coisas que eu gostaria no dia. Falei que queria muito ter um banquete com “comidas mediterrâneas” na festa (entre aspas mesmo, pois até então reduzia-se a comida mediterrânea a basicamente uma mesa de prosciuttos, queijos, pães e massas. #vergonhasquepasseinavida), super na moda nos casamentos naquele momento. E me lembro de contar com entusiasmo essas ideias, enquanto as feições dele ficavam cada vez mais sérias e pensativas. Foi então que ele me interrompeu, incomodado, e falou: “Na minha terra, em dias de celebração e importantes como um casamento, não se pensaria jamais servir algo diferente do que nossas comidas. Sem elas não tem sentido a festa, elas tem muito significado, são parte da celebração. Você me conta de tantas maravilhas das sua cultura, uma culinária tão rica e com tanta tradição, e quer levar comida estrangeira para o dia mais importante da sua vida? Eu não entendo…”

Foi aí que, “cataploft”! Fiquei sem fala, e senti como se tivesse levado um soco no estômago! Foi um choque de realidade realmente forte. Na minha ignorância, enchia a boca para contar da nossa cultura culinária, dos nossos sabores e ingredientes, mas, pelo jeito, não os reconhecia como parte de mim o suficiente, não lhes dava valor o suficiente para deixá-los serem parte de um dia especial da minha vida. Enchemos o peito para falar do que é nosso lá fora, mas aqui, não valorizamos, não fazemos questão de conhecer, entender, se orgulhar.

Isso me deixou realmente muito abalada e me fez rever várias posturas. A mudança dessas posturas não foi, nem é, imediata, até porque leva um tempo para perceber quais são, e como elas estão enraizadas, e então combatê-las. E elas surgem no dia a dia, sem a gente perceber. É, como eu disse, um exercício constante o reconhecer e o valorizar. São posturas como essas que fazem surgir legislações sem sentido, que preferem proibir sem entender, sem ouvir, sem conhecer. São posturas como essas que transformam palavras de significados simples e claros, em adjetivos pejorativos. Não reconhecemos, ou não nos reconhecemos/assumimos como parte dessa identidade, uma vergonha velada que cai na desvalorização.

Esse texto todo é pra dizer que, sim, é muito importante ter bandeiras como a valorização da confeitaria, da comida de raiz, dentre outros, mas que é preciso entender que isso é um movimento que deve vir de dentro pra fora, voltar a olhar de onde viemos, assumir e abraçar nossa cultura. Entendê-la, conhecê-la, e trazer conosco para futuro, continuando a construção da nossa identidade. Acredito que, antes do valorizar a confeitaria no Brasil, é preciso reconhecer que ela é parte da nossa identidade cultural, e penso que meu trabalho deve trilhar por aí. A valorização virá sem esforço se pensarmos assim.

Te convido a fazer esse exercício comigo, eu também estou aprendendo todos os dias, não é simples, mas as descobertas são muito lindas. Com essa reflexão, desejo um ano de muita inspiração, trabalho, e reconhecimento para todos nós!

Obs: Para quem ficou curioso: sim! O menu do casamento foi totalmente alterado, e incluiu pratos e ingredientes típicos de todo o Brasil em um menu lindo e cheio de significado, elaborado pela maravilhosa Agnes Farkasvolgy do Bouquet Garni! Uma das melhores decisões que já fiz!

O resultado foi incrível, inesquecível, delicioso, único, e, até hoje, super elogiado!

Efkaristo Ilias!

A confeitaria pede passagem

*Texto publicado em agosto de 2019 no site “Territórios Gastronômicos”.

Esse blog é um espaço para pensar sobre a confeitaria, sobre a profissão, falar, refletir, compartilhar, e não só receitas, mas pesquisas, questionamentos, história, dicas, experiências, e o que mais for relevante!

São tantos temas e pensamentos que gostaria de compartilhar, que não sabia nem por onde começar. Decidi, então,“começar pelo começo”, dividindo com vocês um pouco sobre a minha história com a confeitaria e como me vejo hoje na profissão. Esse primeiro post vai ser mais longo, então “senta que lá vem a história”!

Tenho uma conexão com a cozinha desde pequena, como a maioria das pessoas que acabam entrando na área tem. Minha avó materna era exímia doceira, e sempre fez os doces de natal na família (doces de tacho como de figo, manga e compotas. Rocambole, doce de leite talhado, pudim, manjares, sonhos etc.), e ajudava na produção dos aniversários, algo que eu sempre adorei participar desde de pequena. Minha mãe adora festas de aniversário, e cresci também adorando tudo em torno dos preparativos. Comida (principalmente doces) na minha família sempre foi motivo de festa e sinônimo de afeto.

A avó paterna tinha pratos clássicos que marcaram muito minha infância também: arroz doce (aquele cozido com casquinha de limão e bem cremoso salpicado de canela…), torta sorvete, bolo de chocolate (que uso a receita da cobertura até hoje!), biscoito de polvilho frito, pastel, e o famoso frango com quiabo. Ela não tinha a mão para doce como a outra avó (o que até rendia certo ciúmes com a avó materna na família), mas os que ela fazia eram sempre impecáveis e a alegria dos netos e filhos.

Para completar, cresci ouvindo histórias da França, pois meus pais lá moraram durante a década de 1980, antes de eu nascer. Meu pai chegou a fazer um curso de culinária para praticar o francês, em Dijon. Algumas das receitas que aprendeu viraram “pratos assinatura” dele, e feitos em ocasiões especiais. Mas, o mais importante, é que esse interesse foi me passado desde pequena, pois ele me instigava a experimentar de tudo, e me contava histórias sobre pratos, ingredientes, lugares e sabores, que foram crescendo no meu imaginário até que eu tivesse a oportunidade de provar.

Me lembro dele chegar em casa tarde às vezes, eu já na cama, acordava e ia vê-lo. Sentado na cadeira do quarto vendo TV, sempre tinha um prato com queijo picado, ou com laranjas que descascava com cuidado. Me sentava no colo dele e esperava minha parte: a “tampinha” da laranja, ou lascas de queijos diversos, que eu adorava (e que eram o terror do meu irmão, que corria em desespero pelo cheiro. Até hoje motivo de risos na família). Ou, às vezes, um queijo mineiro tostado na boca do fogão fincado num garfo, era o petisco da noite. Depois desses minutos de afeto, voltava para cama e ia dormir. No dia seguinte tudo se repetia…

Cresci visitando parentes no interior de Minas, e frequentando os sítios de tios nas férias. Vendo minhas tias encherem a mesa de doces nas reuniões de família, e bolos de aniversário e sorvete feitos do zero pela minha mãe com todo carinho…

De certa forma, cresci com a culinária francesa e a mineira muito próximas a mim, uma mistura que me moldou e molda até hoje. Mas só compreendi isso recentemente.

Minha formação acadêmica original foi em Direito. Ao fim do curso na UFMG não estava feliz com a escolha. Chegava em casa estressada e cansada dos estágios, e gostava de fazer bolos e doces para distrair a cabeça. Comecei a cada vez mais comprar livros de receitas e utensílios, e estudar mais sobre o tema. Por fim, resolvi que direito não era para mim. Então, pós-formatura, já ingressei na faculdade de gastronomia aqui em BH.

A ideia, ao me decidir pela gastronomia, sempre foi ir para França, pois para mim era o berço das técnicas culinárias, e da melhor confeitaria do mundo, mesmo que naquele momento eu não entendesse bem o que isso significava e nem o porquê. No entanto, queria ir com alguma base, mesmo que mínima, sobre a área, até para sentir se estava indo no caminho certo. Foram mais 2 anos e meio de faculdade aqui, o que me deu o suporte que eu procurava e tempo para organizar a mudança para França.

Em 2013, então, fui para Paris para estudar na Le cordon Bleu. Fiz o “Grand Diplome”, que inclui pâtisserie e cozinha. Um sonho realizado em todos os sentidos! Finalmente conhecer a tão famosa França que escutei falar toda minha vida pelos meus pais, e poder estudar na melhor escola de gastronomia do mundo! Uma experiência que, com certeza, mudou e marcou muito minha vida. Foram 9 meses de curso, um ano fora de casa. Aulas de segunda a sábado, ás vezes de 8h às 22h. Me formei ficando sempre entre os cinco melhores alunos durante todo o curso, em cozinha e pâtisserie, uma conquista muito importante para mim. Essa experiência na França só confirmou minha paixão pela área. Estava louca para começar a trabalhar, criar, viver da confeitaria!

De volta ao Brasil, criei a La Parisserie em 2015, com a proposta inicial de trazer a verdadeira confeitaria francesa para BH. Algo que na época não existia por aqui, e que sentia muita falta. Uma confeitaria diferente e diferenciada, com o intuito de fugir dos bolos e tortas prontos, industrializados, um mundo além do leite condensado. Trazer o artesanal, o sabor real dos ingredientes, a sazonalidade, tudo que aprendi na França sobre o que seria uma boa confeitaria. Como não tinha ideia de como seria a reação do público comecei atendendo por encomenda, para sentir o mercado.

No início trabalhei principalmente com os clássicos da confeitaria francesa. Queria que os clientes conhecessem primeiro a base de tudo, o diferencial, o utilizar o açúcar de forma consciente, de valorizar o sabor dos ingredientes presentes, de não usar produtos ultraprocessados, do artesanal. Foi um processo de “educação da clientela”, por assim dizer. A importância em se ter um foco claro, um objetivo, e ser fiel a ele. Perdi clientes no início por não “arredar o pé”, mas ganhei muitos outros que viram que o que eu fazia tinha um sentido.

Então em 2017 nasceu o Atelier da La Parisserie, com atendimento também de pronta entrega. Nessa segunda fase da marca eu comecei a introduzir outros parâmetros da pâtisserie francesa. Dessa vez, não somente as técnicas ou receitas clássicas, mas realmente os ideais: valorização dos ingredientes que temos a nossa volta, regionais. Valorização dos nossos produtos, do artesanal. Preocupação com a sazonalidade, usar o melhor produto, e o produto em sua melhor condição. Preocupação com a cadeia de produção. Fazer uma confeitaria pensada, criativa, estudada. Lutar pela valorização da profissão, e do profissional da confeitaria. Uma bandeira que levo comigo desde então.

Com a marca mais consolidada, hoje tenho mais liberdade de criação, e procuro introduzir cada vez mais um estilo próprio nas receitas e trabalhar o que eu realmente gosto de fazer, e comer. Meu trabalho hoje é cada vez mais explorar as possibilidades que os ensinamentos franceses me deram, junto às minhas memórias afetivas, gustativas e origem, para aplicar na valoriazação dos nossos produtos, e consequentemente da confeitaria brasileira.

Mas existe uma confeitaria brasileira?

É um questionamento ainda sem resposta definitiva, e confesso que mudo de opinião constantemente sobre o assunto, mas a minha certeza é que, o que nos falta é valorização da área, dos profissionais, falta uma confeitaria pensante, que se preocupe mais com o produto final do que só o “vender a qualquer custo”. Falta dedicação, criatividade, estudo, valorização do nosso, conhecimento de técnicas e saberes. É importante saber que nós temos esse potencial, mas falta interesse, e de vários lados.

Esse ano tive também a oportunidade de colocar em prática esses conceitos e questionamentos com o “Jantar de sobremesas”. Um evento que criei para falar sobre o lugar da confeitaria no cenário atual, mostrar suas possíbilidades, e quebrar paradigmas. Demandou muito estudo e trabalho, meses de preparo e dedicação, mas a repecurssão e o carinho recebidos fizeram valer todo o esforço. Foi realmente incrível e me deu muita força para continuar no caminho da valorização da confeitaria.

“Mas Mariana, você trabalha com confeitaria francesa… não é contraditório?”

Os clássicos franceses sempre farão parte do meu trabalho também, pois adoro e são parte da minha formação e da minha história com a confeitaria. Mas quero trazer isso para mais perto da nossa realidade.

A ideia de trazer um “Pedacinho da França” com a La Parisserie para nossa cidade vai além das receitas de pâtisserie francesa. É também trazer esse orgulho que o francês tem da sua confeitaria, é trazer o modo de tratar os ingredientes, é trazer a valorização da área para nossa realidade. É reviver os clássicos com respeito, e não fazer juízo de valor entre receitas tradicionais e de “vanguarda”, é entender que cada um tem seu objetivo e se complementam.

Hoje percebo também que muita coisa que procurei na França encontro bem aqui. Foi preciso sair, olhar com outros olhos, olhos do profissional europeu para entender o que acontecia na nossa profissão aqui no Brasil. Por que a confeitaria francesa é considerada a melhor do mundo? O que a fez ser a melhor? Podemos fazer o mesmo? Onde é preciso agir aqui e onde temos nossas fraquezas? Mas também, onde estão nossas preciosidades?

Temos uma ligação afetiva enorme com doces, temos uma história fortíssima ligada ao açúcar, temos ingredientes incríveis, temos raízes lindas de doçaria… que precisam sair dos quintais, do anonimato, do segundo plano na nossa gastronomia.

Tentarei trazer essas reflexões, novidades, e pesquisas por aqui e convido você a me acompanhar nessa caminhada. A confeitaria no Brasil pede passagem… Vamos juntos?

PERFIL

Depois de se formar em Direito na UFMG, Mariana Correa resolveu mudar de carreira e se dedicar ao que sempre lhe fascinou: a cozinha. Formou-se em gastronomia em Belo Horizonte e, em 2013, foi para França, onde cursou o Le Grand Diplome na renomada escola de culinária Le Cordon Bleu, em Paris, permanecendo entre os cinco melhores estudantes durante todo o curso.

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