Para valorizar é preciso conhecer… e reconhecer…
* Texto publicado em fevereiro de 2020 na coluna AÇÚCAR (Site territórios gastronômicos)
Depois de algumas semanas sumida, estou de volta! Tirei o mês de janeiro para organizar o ano que entra, e refletir sobre os próximos passos. Quem me acompanha pelas redes sociais já viu que entramos com novidades! Tem agenda de cursos, aulas ao vivo, eventos, e até roteiro de viagens pela confeitaria. E por aqui, continuarei a trazer assuntos que considero relevantes na área, tentando sempre levantar questionamentos e reflexões, mas, também, momentos de leveza e afeto, que só um doce pode proporcionar. 🙂
Já começamos o ano com um assunto polêmico, e que tem muito ainda o que ser falado. Deu até “live” com direito a muita interação e questionamento: uma discussão muito importante sobre o uso do tacho de cobre na doçaria mineira, sobre legislações que não conversam com quem vive a realidade do assunto, proibições sem fundamento, mitos que precisam ser esclarecidos. Tenho percebido que tudo passa, mais uma vez, pela educação/conhecimento, mas também por um fator muito importante: o reconhecimento. “Valorização”, “identidade”, “cultura” são termos de peso e importância, mas que, para mim, só fizeram sentido depois que entendi que tem a ver com o reconhecer valor no que é nosso, e se reconhecer como parte disso. Como assim?
Já contei por aqui sobre minha trajetória com a confeitaria, minha formação na França, e como vejo, hoje, que minha experiência fora me aproximou muito dos objetivos que busco por aqui. Já falei o quanto admiro a confeitaria francesa, além das técnicas, pelo que ela representa no seu país, como é valorizada e admirada, e levada muito a sério por lá, e como eu gostaria de ver isso acontecendo por aqui também. Mas nem sempre pensei assim… Passei um tempo acreditando mesmo que o que vem de fora é sempre melhor, o clássico “complexo de vira-lata”. Mudar essa perspectiva não é fácil, compreender nosso potencial e ver o quanto nossa história é rica, é um exercício constante de reconhecimento, de olhar pra dentro e se assumir como parte dessa identidade.
Durante minha estadia na França, tive a oportunidade de estudar ao lado de pessoas de várias partes do mundo, e isso foi, com certeza, uma das coisas mais incríveis dessa experiência. Uma troca de valores inestimável que nos faz questionar muitas coisas, aprender sobre tolerância, respeito, autoconhecimento. Alguns desses colegas se tornaram grandes amigos e foram muito importantes na minha trajetória por lá. Equatorianos, norte americanos, colombianos, venezuelanos, argentinos, chineses, turcos, nigerianos, gregos, brasileiros de diversas regiões, britânicos, dentre outras nacionalidades que dividiram as bancadas, salas de aulas, perrengues, viagens, baladas, e experiências nesse país, que nos recebeu para um período de imersão e estudos sobre sua própria cultura.
Um deles foi um colega grego, o Ilias, que, coincidentemente, tinha uma fascinação enorme pelo Brasil, e sonhava em conhecer nossas terras. Seu pai era marinheiro e viajou diversas vezes para cá, o que lhe rendeu belas histórias que contava aos filhos sobre nosso país, sempre de forma muito encantadora e afetuosa. Ele me contou que sonhava em conhecer mais sobre nossa cultura e poder provar da nossa culinária, que parecia aos olhos dele algo realmente incrível! Como não podia deixar de ser, o orgulho mineiro entrou em cena e contei a ele das delícias da nossa culinária, nossa ligação com uma terra de montanhas e muita história, das influências e heranças do colonialismo nos sabores, das comidas “tradicionais”, e muita coisa que nos permeia. Cheguei a levá-lo, junto com outros colegas, a um restaurante brasileiro para provar alguns quitutes, e encomendei dos parentes que foram me visitar outras guloseimas para apresentar por lá (doces, polpas de frutas típicas, cachaças…), e fiz também algumas receitas afetivas, que todo brasileiro fora de casa por muito tempo precisa de vez em quando: pão de queijo (adaptado, claro), canjica, bolo de cenoura com chocolate, e brigadeiro, para citar alguns.
Toda vez que falava da nossa comida enchia o peito de orgulho, e o Ilias sempre muito entusiasmado em provar de tudo que eu levava e em conhecer mais. Ele, por sua vez, também me trazia delícias da terra de Sócrates e dos Deuses, fazendo desse intercâmbio algo realmente rico e sensacional!
Foi então que um dia comentei com ele sobre os preparativos do meu casamento (estava noiva na época), e das coisas que eu gostaria no dia. Falei que queria muito ter um banquete com “comidas mediterrâneas” na festa (entre aspas mesmo, pois até então reduzia-se a comida mediterrânea a basicamente uma mesa de prosciuttos, queijos, pães e massas. #vergonhasquepasseinavida), super na moda nos casamentos naquele momento. E me lembro de contar com entusiasmo essas ideias, enquanto as feições dele ficavam cada vez mais sérias e pensativas. Foi então que ele me interrompeu, incomodado, e falou: “Na minha terra, em dias de celebração e importantes como um casamento, não se pensaria jamais servir algo diferente do que nossas comidas. Sem elas não tem sentido a festa, elas tem muito significado, são parte da celebração. Você me conta de tantas maravilhas das sua cultura, uma culinária tão rica e com tanta tradição, e quer levar comida estrangeira para o dia mais importante da sua vida? Eu não entendo…”
Foi aí que, “cataploft”! Fiquei sem fala, e senti como se tivesse levado um soco no estômago! Foi um choque de realidade realmente forte. Na minha ignorância, enchia a boca para contar da nossa cultura culinária, dos nossos sabores e ingredientes, mas, pelo jeito, não os reconhecia como parte de mim o suficiente, não lhes dava valor o suficiente para deixá-los serem parte de um dia especial da minha vida. Enchemos o peito para falar do que é nosso lá fora, mas aqui, não valorizamos, não fazemos questão de conhecer, entender, se orgulhar.
Isso me deixou realmente muito abalada e me fez rever várias posturas. A mudança dessas posturas não foi, nem é, imediata, até porque leva um tempo para perceber quais são, e como elas estão enraizadas, e então combatê-las. E elas surgem no dia a dia, sem a gente perceber. É, como eu disse, um exercício constante o reconhecer e o valorizar. São posturas como essas que fazem surgir legislações sem sentido, que preferem proibir sem entender, sem ouvir, sem conhecer. São posturas como essas que transformam palavras de significados simples e claros, em adjetivos pejorativos. Não reconhecemos, ou não nos reconhecemos/assumimos como parte dessa identidade, uma vergonha velada que cai na desvalorização.
Esse texto todo é pra dizer que, sim, é muito importante ter bandeiras como a valorização da confeitaria, da comida de raiz, dentre outros, mas que é preciso entender que isso é um movimento que deve vir de dentro pra fora, voltar a olhar de onde viemos, assumir e abraçar nossa cultura. Entendê-la, conhecê-la, e trazer conosco para futuro, continuando a construção da nossa identidade. Acredito que, antes do valorizar a confeitaria no Brasil, é preciso reconhecer que ela é parte da nossa identidade cultural, e penso que meu trabalho deve trilhar por aí. A valorização virá sem esforço se pensarmos assim.
Te convido a fazer esse exercício comigo, eu também estou aprendendo todos os dias, não é simples, mas as descobertas são muito lindas. Com essa reflexão, desejo um ano de muita inspiração, trabalho, e reconhecimento para todos nós!
Obs: Para quem ficou curioso: sim! O menu do casamento foi totalmente alterado, e incluiu pratos e ingredientes típicos de todo o Brasil em um menu lindo e cheio de significado, elaborado pela maravilhosa Agnes Farkasvolgy do Bouquet Garni! Uma das melhores decisões que já fiz!
O resultado foi incrível, inesquecível, delicioso, único, e, até hoje, super elogiado!
Efkaristo Ilias!